quarta-feira, 30 de novembro de 2011

“Aqui [no A Tarde] você pode falar de tudo” | Cleidiana Ramos

Carla Ribeiro, Gustavo Mões e Susana Rebouças


Cleidiana Ramos tem 36 anos, é graduada em jornalismo pela Facom/Ufba e é mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Faculdade de Filosofia e ciências Humanas da Ufba. Hoje é repórter especial do jornal A Tarde e blogger do Mundo Afro.
Como repórter se especializou na cobertura dos temas ligados à identidade e religiosidade afro-brasileira.
Cleidiana é autora de dois livros-reportagem "Os Caminhos da Água Grande" (Município de Iaçu, suas histórias e impasses para o desenvolvimento), de 1998, a "Janela de Dona Ubaldina" (Histórico do município de Boa Vista do Tupim, 2004); e co-autora do livro "A Casa que Fala dos Olhos do Tempo da Nação Angolão Paquetan", organizado por Aristides Alves e lançado no ano passado.
De agosto a setembro desse ano atuou como facilitadora do Curso de Gênero, Raça e Etnia para jornalista, realizado em oito capitais brasileiras (Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Maceió, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), além de Brasília na modalidade in company para a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). O projeto ocorreu por meio de uma parceria entre a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e ONU Mulheres.
Cleidiana é a responsável pela formulação do projeto editorial e edição dos cadernos especiais publicados por A Tarde no Dia Nacional da Consciência Negra.

Como ocorre o processo de coleta das pautas no A TARDE?
De forma geral a gente tem tanto as pautas que são elaboradas aqui dentro, sempre a gente procura equilibrar, digamos assim, as pautas próprias, que a gente mesmo pensa, que os repórteres sugerem, como as pautas que chegam via assessoria de comunicação, de órgãos públicos, de movimento social. Então, a gente tem essas duas fontes principais: as nossas próprias, digamos assim, e as que chegam enviadas pelas assessorias de comunicação.


E as pautas do caderno especial da Consciência Negra?
Na verdade, o caderno especial é diferente. O caderno especial tem um projeto editorial. Desde o primeiro a gente optou pelo modelo temático, porque a gente pensou o seguinte, não mudam os temas mais gerais, o dia da consciência negra sempre se discute gênero, ação afirmativa, saúde, juventude. Então, se a gente tivesse um caderno como tema todo ano ia repetir as mesmas coisas. Desde o primeiro optamos por fazer um caderno sobre um tema determinado e a gente explora esse tema até onde pode. A gente sempre procura equilibrar: um ano faz educação, outro ano faz cultura, economia. Esse ano, por exemplo, optamos por uma abordagem mais antropológica e cultural, que foi o dendê. Então a ideia é essa, trazer o tema que a gente possa explorar nas mais variadas vertentes, nos mais variados assuntos.


Para qual público você escreve?

É muito complicado. Aqui atualmente se diz o seguinte, a gente tem pelo menos oito canais. Hoje já não é mais um jornal, é um grupo de comunicação, porque a gente tem dois jornais diários: o mais antigo, a gênese da empresa que é o A Tarde, e o Massa!, um canal mais novo. Temos a Muito, que embora esteja encartada no jornal, é tratada como um canal independente. A gente tem a Rádio A Tarde FM, tem o portal A Tarde Online, tem um provedor de internet, tem o Mobi, um serviço de notícia pelo celular e tem a Agência A Tarde. Então nós, na verdade, somos um grupo de comunicação, e isso é para dar conta dos mais variados públicos que a gente tem. Hoje a gente trabalha com a direção, isso por meio de consultoria, estudos de mercado. A Tarde se concentra no trabalho feito para as classes A e B, e temos o Massa! predominantemente voltado para as classes C e D. Mas isso é muito relativo, no jornalismo a gente vai encontrar situações em que pessoas, do ponto de vista econômico têm as características de consumo de classe A que leem o Massa! e pessoas que têm características de consumo da classe C que leem A Tarde. Mas o que a gente tenta é fazer um equilíbrio entre isso. O A Tarde hoje é feito para um público A e B, embora a gente, nesse caderno da consciência negra, escreva para todo mundo. Até porque temos uma abordagem muito pedagógica, tanto é que desde 2008 a gente descobriu que esses cadernos estavam sendo usados como material didático, e tínhamos esse retorno na rua, de leitores que diziam: “- Ah! Eu aproveitei para dar aula com aquele material”. Isso por conta da lei 10.639/2003 que estabelece obrigatoriamente o ensino de história da arte e cultura afro-brasileira nas escolas e por que Salvador foi a primeira capital do país a operacionalizar a lei em 2005. A grande reclamação era a falta de material didático. Porque você tem muita produção, a Bahia é uma das maiores escolas na área de ciências sociais, de produção de estudos na área dos estudos étnicos raciais. A Bahia é uma escola, ela tem uma tradição nisso. A gente fala escola num sentido amplo em produção de conhecimento, principalmente na área de ciências sociais, antropologia e história, mas o que você tem às vezes é uma produção muito técnica. Então a grande dificuldade, no início, de aplicação dessa lei era a falta de material didático, material para a formação do professor, mesmo, que o professor pudesse usar. E a gente começou a receber retorno que os professores usavam esse material. Porque o jornal consegue fazer isso. Às vezes o jornal pega uma tese de doutorado e consegue traduzir pelo menos a ideia principal da tese, suas principais conclusões numa linguagem mais acessível a todo mundo. Nós aqui temos uma lista de acadêmicos que entrevistamos sempre, que são especialistas, e às vezes a gente consegue fazer essa tradução. Então as pessoas começavam a usar esse material da gente, e por conta disso a gente começou a incorporar no próprio caderno dicas de como usar o nosso material em sala de aula. É uma professora que faz isso, ela tem especialização em história da arte e cultura afro-brasileira, e ela que faz essa tradução desde 2008, é a professora Joseane Clímaco. Então, a gente tem essa abordagem mais pedagógica, ou seja, a gente escreve pra muita gente.

Porque, diferente dos outros veículos, o A Tarde optou por um caderno especial sobre a Consciência Negra?
Eu não sei. Na verdade esse caderno começou aqui em 2003. Ele surgiu de uma pauta, quando o Ricardo Noblat foi editor de redação daqui, ele chegou em 2002 e ficou oito meses. Ele me chamou porque eu tinha participado de um projeto piloto que ele fez aqui, que era a editoria de verão, e uma colega de economia Daniela Silva tinha sugerido uma pauta - ela era repórter de economia na época - para discutir a questão do racismo na Bahia, e ele me chamou porque não acreditava que na Bahia tinha racismo. Então era uma pauta para que nós abordássemos a questão do racismo. A pauta partia de uma experiência, que era, no caso, uma repórter negra, eu, e uma repórter branca, que era Manuela Barros, que não está mais aqui. A gente ia num shopping para tentar consumir, ou seja, entrar numa loja para ver qual era a diferença de tratamento. Quando eu comecei a apurar para preparar o material, a gente foi perceber que a questão da cor daqui da Bahia, como no país inteiro, era muito complicado. O racismo é um tabu, as pessoas não gostam de discutir o racismo no Brasil, exatamente porque foi construída essa ideia de que o Brasil é uma grande democracia racial, que se desmancha no primeiro recorte que você faz em qualquer estudo. 
Se você pega dados do SUS, que passou a incluir raça e cor, você vai ver que o atendimento para pessoas negras, e isso quem está dizendo não é nenhum militante do movimento negro, que o atendimento de uma pessoa negra é menor, mesmo no SUS, do que o atendimento de uma pessoa branca. Os médicos gastam mais tempo com uma pessoa branca do que com uma pessoa negra. Se você pega os dados de educação e faz o recorte de cor, os negros têm menos acesso a educação do que os brancos. Se você pega os dados econômicos, o salário dos negros é menor que o salário dos brancos, mesmo que ambos estejam na mesma função. Isso tudo não pode ser coincidência, embora as pessoas achem que é, ou que é problema de classe. Mas mesmo assim, se a classe pobre é formada por uma maioria negra, numa cidade que é considerada a maior cidade negra das Américas e a segunda maior de população negra do mundo, só perde para uma cidade da Nigéria, Lagos, tem alguma coisa errada. A gente tinha que provar isso, a ideia era essa. 
Quando a gente foi se aprofundando, a gente foi vendo que o problema era muito maior, era extremamente complicado, até a questão da nuance da cor, se você é mais claro, se você é mais escuro, mesmo que você seja negro, isso tem uma diferença. A gente ainda incorporou mais um colega na experiência, Gilson Jorge, que tem um tom de pele mais escuro do que o meu. Curiosamente as coisas mais complicadas aconteceram mais comigo do que com Gilson. E aí a gente foi vendo que a coisa era muito grande. Quando a gente voltou da apuração Noblat disse: “Rapaz, vamos fazer um caderno, porque a gente ficar falando disso todo dia numa série de reportagem vai começar aquela história de, "- Ah! Alguém quer responder à [matéria] que saiu ontem", e a gente não acaba, vamos fazer um caderno”. Aiía gente começou a produzir o caderno. 
Quando ele foi embora, vimos que o material estava ficando super legal, e ai a gente guardou para o 20 de novembro que estava próximo. O caderno saiu e foi um sucesso, e a partir daí a gente não parou mais. O jornal tornou esse caderno um produto estratégico. 
A gente trata ele muito bem, e ele foi se aperfeiçoando. A forma de fazer o caderno é muito diferente de tudo que a gente faz aqui. Acabamos criando uma metodologia muito própria, banco de fonte muito própria. Em 2008, por sugestão até do atual editor chefe, Ricardo Mendes, fizemos uma espécie de conselho de leitores do caderno. A gente convida algumas pessoas para vir aqui no jornal, claro com o compromisso da confidencialidade, eles não vão dizer lá fora o que estamos fazendo, e aí a gente discute com eles a pauta do caderno. E são reuniões extremamente ricas. A gente convida especialistas no tema em que a gente está tratando, e passamos a convidar o pessoal de governo para participar também. Esse ano a gente teve a participação do secretário estadual de promoção da igualdade, o secretário municipal da reparação, que já participou, e esse ano ele não veio porque na hora ele tinha um compromisso. Então isso é extremamente rico.
O caderno da arte que foi o primeiro que a gente fez essa experiência, que foi o de 2008, e o título foi Arte da Resistência, a gente tinha pensado num caderno para falar de arte inspirada em temas negros, ou a arte feita por artistas negros. E o nosso pensamento quando o caderno foi construído, quando a pauta do caderno foi construída era todo clássico, arte clássica. Então nos pensávamos, “Ah! Vamos falar das coleções do Museu Afro”. Mas quando o pessoal veio participar, eu lembro que o professor Jaime Sodré disse assim, “- Ué, vocês não vão falar do hip-hop, não? Vocês não vão falar do grafite, não?”. A gente foi se assustando porque não tinha imaginado essas coisas como arte, e são coisas que inclusive são estratégicos do movimento negro, de discussões do movimento negro. Então mudou completamente, a capa do caderno foi um grafite, e é muito legal o que a gente tem feito. Então todos os anos existe esse compromisso, a gente traz o pessoal aqui, e é uma discussão fantástica, todo mundo participa, vira uma espécie de mini seminário, porque a equipe do caderno toda participa dessa reunião, desde a reportagem até a arte, o pessoal da infografia, todo mundo participa.

Quantos repórteres participaram deste caderno especial?
Deste caderno específico foram Maíra Azevedo, Meire Oliveira, Juracy dos Anjos, Juliana Dias e eu também fiz matéria. Cinco repórteres.

O A Tarde foca mais o interesse público ou o interesse do público?
Na verdade a gente tem eixos de cobertura, que são coisas que a gente levanta a partir de pesquisas de interesse. Eu posso falar de Salvador, a editoria que eu estou mais envolvida. A nossa direção é: o que interessa ao maior número de pessoas possíveis ou que interessa ao público leitor de A Tarde. Então, mobilidade, que hoje é uma questão crucial na cidade, educação, saúde, religião, comportamento, patrimônio e meio ambiente, esses são alguns nortes de cobertura que a gente tem. Então, dentro desse guarda-chuva enorme a gente se movimenta. Mas sempre buscando o que é de interesse publico num sentido amplo, ou seja, o que impacta a vida, tanto do ponto de vista positivo quanto do ponto de vista negativo, o maior número de pessoas possíveis.

A politica do A Tarde interfere no processo de construção da notícia?
A gente tem um código, ou um compromisso editorial de defender a pluralidade, combater qualquer tipo de preconceito, defender o interesse publico, ou seja, nada que difere do código de ética do jornalismo. É isso que a gente tem como direção. Claro que o jornal tem interesses comerciais, isso aqui é uma empresa privada, não é autarquia, como muita gente pensa. As pessoas, às vezes, pensam imprensa como autarquia. Se você for olhar os grandes jornais do país estão nas mãos de, no máximo, 10 grupos empresariais. Então, você não pode ser ingênuo e achar que não, mas se eu tenho um negócio eu tenho interesses e meu interesse é o lucro. Então eu não posso imaginar que isso está abaixo do compromisso. Claro, é um tipo de negócio diferente dos outros negócios, mas é um negócio. E o que dá a baliza desse negócio é o compromisso ético, não só dos jornalistas que trabalham aqui, como dos donos do jornal. Eles sabem que estão lhe dando com uma coisa extremamente difícil, que é formação de opinião. Entra em questão de escolha, de consciência, é um processo que tem muito parâmetro. Agora, é claro, o jornal tem os interesses comerciais dele. Mas assim, do ponto de vista de censura, a gente não tem aqui nenhum tipo de censura. Eu tenho 13 anos aqui no jornal, diretamente eu nunca recebi esse tipo de ordem, “bata no governo”, “não bata no governo”. Esse jornal já foi acusado de ser carlista, já foi acusado de estar em cima do muro, depois já foi acusado de ser anticarlista, depois já foi acusado de ser oposição, agora ele é acusado de ser situação. Às vezes as pessoas lá fora etêm uma avaliação do órgão de comunicação que nem os próprios donos imaginam. É engraçado isso, o A Tarde sempre foi tido como um jornal conservador e hoje o A Tarde é referência no tratamento do tema de cidadania, o que a gente não veria num jornal dito conservador. Em relação à cobertura étnica, o jornal é referência nacional, porque os grandes jornais sempre deram essa desculpa ao movimento negro: “A gente não cobre questões de racismo porque é militância”. A gente cobre isso aqui, sempre cobriu, e de forma mais continuada há oito anos. Nenhum de nós aqui é militante. Eu não sou filiada a nenhuma organização do movimento negro, como nenhum dos outros repórteres que fazem isso aqui. E a gente dá matérias, debate ações afirmativas, desigualdade racial em saúde, desigualdade racial em educação, desigualdade racial em cultura, a gente debate intolerância religiosa em um jornal que é dito conservador e católico, falamos de todo mundo aqui. A gente tem matéria até com templo de bruxaria celta. Às vezes as pessoas carimbam a empresa de uma forma e a empresa, às vezes, muda tanto. Hoje é tão dinâmica essa coisa de jornalismo, os jornais impressos diante da crise quebra cabeça o tempo inteiro. Aqui a gente já mudou de várias orientações editoriais, exatamente para tentar achar caminhos diferentes da crise que é mundial. Então, o jornal muda tanto e às vezes e as pessoas não acompanham essas mudanças.

Já aconteceu de alguma matéria sua ser modificada por conta desses interesses da empresa? Não. Até porque aqui a gente não tem essa prática de você interferir, mudar a matéria e assinar com seu nome. Aqui a orientação é que se uma matéria  não está adequada ao que se tem como princípio de informação, ela fica para outro dia, para adequá-la ao que é feito. Agora mudar o texto? Aqui nunca houve essa prática, não. Aqui você pode falar de tudo. Agora é claro que a gente também tem responsabilidade, você não pode fazer qualquer tipo de relação leviana sem ouvir o outro lado. Nada que os manuais de jornalismo não mandem, é o que a gente faz. Agora comigo nunca aconteceu, aqui dentro não conheço nenhum caso de matéria modificada por causa de interesse. É mais fácil não sair, do que sair modificada.

Como você definiria a linha editorial do A Tarde?

É um jornal muito voltado para região, para os interesses regionais, até por que é um jornal de muita penetração no interior. É o único jornal que chega no interior do estado.

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